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entre abraços

O postigo abriu-se e uns olhos inspectivos fizeram uma pergunta silenciosa. Respondi, “Sorrir e acenar.” A porta foi aberta e na minha imaginação esperava ouvir um assustador rangido, mas nada se ouviu; deslizou silenciosamente. Na antecâmara um cartaz informava que me devia despir – fi-lo. De seguida passei por uma portada que me mediu a temperatura e me aspergiu o corpo com desinfectante. Vesti um fato-macaco descartável, antiepidémico e antibacteriano. Quando fiquei totalmente artilhado a luz existente por cima de outra porta acendeu verde. Abri-a e entrei num espaço mais que amplo e brilhante. Solucei em face do que vi: um paraíso de abraço e mais abraços. Exibiam-se casais abraçados, abraços em grupo. Ah! Que visão. Aproximei-me de um casal e cerquei-os com dois braços desejosos de contacto humano. Chorei quando o meu contacto foi retribuído e ali naquele momento senti-me o mais feliz dos mortais. Já não me recordava o quanto um abraço é especial. Abraçado e a abraçar rosnei uma prece de ódio à maldita pandemia.

crise de gota

Sofri no passado domingo a primeira crise de gota – porra!

Podia ser uma crise de amnésica, uma crise de sorte, uma crise ambiental, um crise cubana, em última recurso uma crise de estupidez, mas não, não teve de ser uma crise de gota. Uma cena que não é motivo de orgulho para ninguém. Acordar com dores enormes no dedão do pé direito, assistir ao seu crescimento, à sua deformação foi inesquecível.

Na unidade de saúde a que me desloquei para perceber o que se passava tive de passar por uma máquina que detecta, quase automaticamente, a temperatura corporal – colocava a testa, a mão direita, a mão esquerda, as palmas, mas apenas passados 3 minutos é que a máquina debitou “35.3 graus” e lançou jactos de vapor desinfectante e passei à fase seguinte: sala de espera.

Estamos, realmente, num mundo em que a alienação é a ordem do dia. Dentro daquela máquina, senti-me pela primeira vez, alienado – vítima inocente ou não de uma maluquice mundial.

mente sã em corpo coiso

Aqui está o equipamento, junto a algumas estantes, que uso para colocar o meu corpo como deve ser. O problema é que o meu corpo tem os seus desejos e nunca se submeteu à minha vontade.

Mas todos os dias, durante 30 minutos, tento convencê-lo a mudar de ideias – a ver vamos.

cara – 064

Cara e corpo a acompanhar.

manter a paixão

Desde o início da pandemia que Aleksandro é recebido no hall, assim que chega do trabalho, pela sua mulher Rubena ornada com luvas e máscara cirúrgica. Ela despe-lhe toda a roupa, colocando-a num saco de plástico; a roupa irá posteriormente para a máquina de lavar roupa.

Completamente nu, Rubena inicia uma tarefa que Salas sente ser agora o epítome da paixão. Rubena besunta-lhe o corpo com gel desinfectante com uma solução de 95% de álcool e demora-se pacientemente em todas as partes; sem pressas Aleksandro sente o corpo ser higienizado – sublime. E com um beijo nos lábios do seu marido Rubena dá o trabalho por terminado.

Esta rotina decorreu sem sobressaltos durante catorze dias. Hoje antes do ritual do beijo Rubena coloca uma máscara em Aleksandro e sussurra-lhe sensualmente ‘espera pela surpresa’. De olhos vendados ele aguarda saturado de desejo o regresso de Rubena.

A última frase que Aleksandro ouviu na sua vida antes do raspar de um fósforo foi ‘sente agora o ardor da nossa paixão’.

p.r.o.f.e.s.s.o.r.

O combate ao Coronavírus – COVID-19 pode passar por em colocar na linha da frente seres que têm habitado locais inóspitos, áridos nos quais o vazio cerebral e corporal é quase, quase garantido e os vírus não se propagam no vácuo! Estes locais são, para quem desconhece, as Pousadas Remotas Onde Fecundam Estúpidos Sisudos e Solenes de Olhar Resiliente; localidades mais conhecidos como P.R.O.F.E.S.S.O.R.

Esperemos que estas armas de estupidez massiva seja uma das soluções.

o que menos me preocupou foi a cor do sangue dela

O que menos me preocupou foi a cor do sangue dela: vermelho como todos. O problema que se me colocava era como retirar o corpo do apartamento sem ninguém descobrir. Não sendo canibal, comê-la estava fora de questão. A solução estava em fazê-la desaparecer sem sair do apartamento. Através de ácidos na banheira – vulgar. Sentei-me e olhei para o peixe vermelho que dentro da bola de vidro gozava comigo. E nesta altura a solução surgiu com mais naturalidade do que uma erecção. Um aquário de 150cm é uma decoração sempre elegante e ainda mais se estiver habitado por certos peixes.


Uma história com exactamente 101 palavras.

níveis de stress

Se o seu stress não respeita as normas ISO 10551 significa que está perante uma sensação térmica não autorizada e por isso deve dirigir-se de imediato ao Centro de Saúde mais próximo para ficar em quarentena ambiental. Após 48 horas será efectuada uma avaliação aos níveis de desconforto tendo em conta as características pessoais e o vestuário utilizado. Se os biomarcadores testados pelo corpo forem negativos para a deformação em V a quarentena será levantada.

haverá

Haverá algo melhor do que sentir a chuva a cair no guarda-chuva ao som da Lacrimosa de Mozart, debitada directamente nos ouvidos, enquanto o cheiro da terra molhada te impregna o nariz, a humidade e o frio te rodeia e embala, além de estar sentado na cama, quente, aconchegado pelos lençóis e pelo corpo sensual que se entrelaçou no teu, enquanto sorves um golo de chá quente e te preparas para iniciar a leitura do Romance de Genji e vês no parapeito o gato a brincar com a chuva que bate hipnoticamente nos vidros da janela?

escrevo

Escrevo
em avulso,
por grosso.
Assim e assado!

Escrevo palavras
açucaradas,
azedas,
insossas,
mas nunca salgadas.
O sal é sagrado.
Beatifica-me o corpo
e o espaço.

Escrevo palavras
planas,
convexas,
côncavas,
mas nunca espelhadas.
O espelho é cópia.
Reflecte-me o real
e o virtual.

Sombras de beatas.

Escrevo um sim.
Escrevo um não,
mas nunca um talvez.
Se não estou tramado
com a indefinição.