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nunca

“Nunca lambi os dedos para virar folhas.”

“Nunca comi sushi.” “Nunca…” e estas afirmações são ditas com um orgulho desmedido. Pessoalmente nunca comi bisonte, nem centopeias, nem cão (acho eu), mas mosquitos já foram muitos os ingeridos involuntariamente. Gosto especialmente dos que afirmam “Nunca disse um palavrão.” A sério foda-se! Fantástico! Merecida medalha. Eu acho que um bom palavrão, o uso de calão em certas e determinadas situações compensa ter ouvido alguém, com coragem, afirmar “Nunca li Guerra e Paz, mas vi o filme.”

O “nunca” seguido de um “mas” é puro deleite. Pois quem o afirma sente-se mal pela anunciação do “nunca” e acrescenta o “mas” para mitigar o dano. É dar uma no tiro e outra na ferradura, é um soneto sem rima.

“Nunca fiz uma directa, mas já fumei ganza.” “Nunca dei um peido na cama, mas já arrotei.” Atitudes típicas de sociopatas.

Nunca digas nunca é o meu conselho.

retribuições

Todos os dias a minha filha vem dar-me beijos de boa-noite. Dá um beijo e eu retribuo. Dá outro e eu retribuo. Outro e eu retribuo. Ainda outro e eu retribuo. Pimba mais um e eu retribuo. Termina encostando o seu rosto ao meu; e enquanto se afasta coloca os dedos no meu cabelo e despenteia-o. Eu tremo de exasperação, fecho os punhos e digo-lhe sempre “não gosto que faças isso”. Mas ela faz-lo continuamente.

Ontem a mesma rotina exceptuando um pormenor. Quando colocou os dedos no meu cabelo para o escangalhar ele não se mexeu. Olhou para mim espantada e disse zangada:
— Não teve piada. Por que colocas-te laca no cabelo?
— Porque a tua expressão valeu mil beijos.
— Não tornes a fazer isso pai.
— Okay.

revista amanhecer, 2017

Tenho colaborado com pequenos textos para a revista Amanhecer da Escola Secundária de Barcelos. Este ano um dos textos tinha duas imagens e uma delas foi suprimida – lapso, gralha ou omissão deliberada? Ainda não sei.

A primeira imagem:

like

E a imagem, simples, singela, elegante, que se desvaneceu:

the finger

Estou desiludido. O texto perdeu todo o seu significado.

fui ao cinema a uma quarta-feira

Fui ao cinema a uma quarta-feira. Não me recordo do que vi. Apenas registei um pormenor: uma pessoa do sexo masculino sensualmente educada, actualmente sem rosto, segurou a porta para eu passar – urinei sozinho. Essa pessoa não estava à minha espera para me reabrir a porta; com a ponta de dois dedos puxei o puxador, abri a porta. Não me recordo, também, em que shopping ocorreu; mas foi na era em que os WC tinham portas. Agora os shoppings mais modernos resolveram a questão da existência das portas à entrada dos WC; estas pura e simplesmente foram suprimidas sem brilho e sem glória. Essa coisa – a porta – é o adereço ridiculamente menos higiénico.

Enquanto retorço todas as minhas curvas ao melhor estilo de contorcionista de circo para não molhar com qualquer pinga marota de urina, ou como seria falado no Discovery Channel, com o líquido segregado pela bexiga, o meu calçado, porque alguém apelidado academicamente de criativo reconstruiu algo a que se atreveu chamar de urinol, mas que servirá, certamente, para muita coisa, excepto para se mijar à vontade, é como afirmar que uma pizza sem queijo é pizza, e sem qualquer ideia de desculpa na mente o urinol ideal tem de abraçar a urina imperturbável, isentando-me de grande ginástica, só me faltava agora até o urinar ser entendido como queimador de calorias, já imagino doentiamente uma tabela que exemplifique a relação entre tipos de actividades e consumo energético, felizmente ainda temos um Phillipe Starck que sabe projectar casas de banho onde o urinar é transformado em acto zen. Raramente me apercebo, enquanto executo alguma acrobacia, de qualquer pessoa do sexo masculino a lavar as mãos após o manejo do falo e por isso quem tiver coragem e estômago imagine, nem que seja por parcos segundos, a vastidão cósmica de bactérias, nojeira pestilenta que essas portas comportam. Eu tive a ousadia, talvez macerada por duas belgas 50dl que me obrigaram precocemente a recorrer a um WC, de cismar em dada altura com a palavra fétida elevada à quinta potência e ao colocar a mão numa dessas portas paralisei de imediato; só um olhar espantosamente vítreo de uma pessoa vítima talvez, pela forma apalhaçada como saltitava ao meu lado (eu bloqueava a entrada para o WC), de uma violenta noctúria diurna me quebrou o transe.

Em algumas das linhas acima escrevi pessoa do sexo masculino não por distracção, mas sim com um propósito. Esse adjectivo serve para distinguir dentro do masculino os homens e os outros. Não basta uma pessoa ser do sexo masculino para ser homem; mas para ser homem homem é, pois com toda a naturalidade, obrigatório pertencer ao sexo masculino. Porque agora é cientificamente correcto afirmar que a sexualidade humana já não se esgota na perfeita, secular, milenar e considerada, até bem pouco tempo, imutável dualidade dois sexos; quando até os cromossomas sexuais compostos por XY nas pessoas do sexo masculino e por XX nas mulheres, o famoso 23º par, levam com uma ruptura epistemológica em cima que faria corar Bachelard, pois além do sexo masculino e feminino há gente pretensiosa que, abalando o bom senso de qualquer bonus pater familias, se decidiu, violando o cariótipo humano, colocar em situações de, digamos, intersexo (gente indefinida, indecisa que tem particularidades masculinas e femininas, dois em um); quando esta gente, tenho de dizer com relutância, com características insectóides, com mais afinidades ao planeta Lepidopterra do que à minha amada Terra, só posso concluir que esta espécie humana monóica só veio dar razão à insanidade de Walter Sparrow pela complexidade assustadora do 23º par, do número 23. Há alguma razão científica para que seja o 23º par a definir as características sexuais? Não houve na altura da representação do cariograma alguém que tenha lutado contra o 23º par? Já todos sabemos o quanto horrendo este número pode ser e mesmo, assim, os cientistas betinhos consentiram que ele diabolicamente e a seu belo prazer defina o sexo da espécie humana? Uns tolos. Onde estava a pró-atividade dos cientistas? – certamente escondida. Não havia alguém devidamente informado da chocante relação com a Lei dos Cinco, pois 2+3=5 – resumindo um caos.

que qualidade se pode exigir à batata?

É mais que sabido que a ingestão não moderada de álcool acarreta graves consequências, nomeadamente ao nível da performance sexual. Não existe margem para dúvida que o consumo de álcool diminui a coordenação motora, afectando as aptidões perceptivas e cognitivas, e, pois claro, a capacidade de pressão.

São cada vez mais os casos, vulgarmente baptizados, por “falha em acertar no buraco”, tecnicamente designados como o síndroma da perseguida: o pénis persegue a entrada da vulva, tal mosca a bater ad eternum num vidro, mas nunca acerta e fica de fora bambaleando-se até perder potência e a jovem a paciência.

Aqui o vosso BigPole tem a felicidade de se movimentar pelos meandros da sexualidade nocturna e diurna sem problemas. Reconheço que sou um bom cliente das profissionais da mais antiga profissão do mundo, só me falta ter um cartão de fidelidade para acumular pontos, e igualmente um bom conselheiro. Foi, portanto, na sequência de uma conversa pós-sexo, que, a como que presidente da Organização de Regulação Geral da Actividade Sexual Mesmo Óptima (O.R.G.A.S.M.O.), me confidenciou o facto de que o “oh… oh… sim… mais.. uh… vai.. vai.. ahh… ahhhhh… ai… ai… ui… ui… sí cariño… vai… fundo… isso… me gusta… mais! mais! mais! ok!” e todo um possível caleidoscópio de gemidos está com os dias contados. O cliente é cada vez mais bêbedo, porco e sem o mínimo de postura cívica para utilizar os serviços de qualquer rameira que se orgulhe de dizer de peito ao léu sou uma puta; até as profissionais de nível zero, que não obtiveram aprovação em pelo menos três UFCD (Unidades Fomentadoras de Cenas Doidas), e que pululam e copulam à bermas das estradas se queixam que nem de quatro o buraco é aconchegado com elegância – estão cada vez mais insatisfeitas e apenas esperam a altura para dispararem “agora chega! acabou o tempo!”

As profissionais do sexo querem, como nos antigamente, não apenas dar prazer, mas sentirem diversão no trabalho que têm entre mãos, seios, coxas, enfim, não preciso de fazer um desenho – é o que elas chamam de 2 em 1. Se recebem uma compensação monetária para darem gozo, qual o motivo para não obterem igualmente um saudável e respeitável orgasmo? É pedir muito a um cliente? Não pode ser o cliente um bom amante?

Aconselhei, como quem não quer a coisa, apesar de já estar com os dedos enfiados nela, que “vocês deviam estipular um mínimo de condições de acesso aos vossos serviços.”

Soube, mais tarde, numa outra discussão com a púbis morena da minha presidente, que foram definidas algumas orientações para os clientes, a saber:

  • O cliente não pode estar com uma taxa de álcool acima de 0,65 gramas por litro de sangue. Deixam de existir falsas partidas.
  • O lema “cada um é cada um” só é aceitável a partir do tamanho médio de 12cm a 17cm de pénis erecto como foi definido pelo The Kinsey Institute for Research in Sex, Gender, and Reproduction. Nada de brinquedos de 7cm, excepto se vierem acompanhados de um bom vibrador gelatinoso e por um livro de banda desenhada para o cliente se entreter enquanto espera.
  • Acabaram os sabores vintage. O pénis deve ter um mínimo de limpeza. Tal como um vinho não deve saber a podre, o falo não deve revelar que esteve a marinar por uma semana no cu de um porco. Se tal não acontecer a profissional utilizará um toalhete com PH neutro para a limpeza – despesa a acrescer à tarifa base e sem desconto de tempo; pode até, em último recurso, recusar prestar o serviço, mesmo que o cliente lhe ofereça uma caixa de preservativos com sabor a bolo de batata. Como sabem estes preservativos estão in e qualquer amante que se queira vir deve andar com uma embalagem de 6 na carteira.

Foram tomadas mais decisões, mas eu já não estava com atenção nas palavras, mas no corpo de quem as lia. E, pela primeira vez, a presidente pediu-me para colocar um batata – não me apanhou desprevenido. Claro que eu, o vosso estimado BigPole, não se limitou a usar o batata e aproveitou para amaciar a amante com um ondulante poema:
Beijo-te
Ai…sim!
Tremes
Arrepiada
Transpiras
Apaixonada!

Que noite! Saiu-me foi cara.

o vosso legislador BigPole