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entre abraços

O postigo abriu-se e uns olhos inspectivos fizeram uma pergunta silenciosa. Respondi, “Sorrir e acenar.” A porta foi aberta e na minha imaginação esperava ouvir um assustador rangido, mas nada se ouviu; deslizou silenciosamente. Na antecâmara um cartaz informava que me devia despir – fi-lo. De seguida passei por uma portada que me mediu a temperatura e me aspergiu o corpo com desinfectante. Vesti um fato-macaco descartável, antiepidémico e antibacteriano. Quando fiquei totalmente artilhado a luz existente por cima de outra porta acendeu verde. Abri-a e entrei num espaço mais que amplo e brilhante. Solucei em face do que vi: um paraíso de abraço e mais abraços. Exibiam-se casais abraçados, abraços em grupo. Ah! Que visão. Aproximei-me de um casal e cerquei-os com dois braços desejosos de contacto humano. Chorei quando o meu contacto foi retribuído e ali naquele momento senti-me o mais feliz dos mortais. Já não me recordava o quanto um abraço é especial. Abraçado e a abraçar rosnei uma prece de ódio à maldita pandemia.

manter a paixão

Desde o início da pandemia que Aleksandro é recebido no hall, assim que chega do trabalho, pela sua mulher Rubena ornada com luvas e máscara cirúrgica. Ela despe-lhe toda a roupa, colocando-a num saco de plástico; a roupa irá posteriormente para a máquina de lavar roupa.

Completamente nu, Rubena inicia uma tarefa que Salas sente ser agora o epítome da paixão. Rubena besunta-lhe o corpo com gel desinfectante com uma solução de 95% de álcool e demora-se pacientemente em todas as partes; sem pressas Aleksandro sente o corpo ser higienizado – sublime. E com um beijo nos lábios do seu marido Rubena dá o trabalho por terminado.

Esta rotina decorreu sem sobressaltos durante catorze dias. Hoje antes do ritual do beijo Rubena coloca uma máscara em Aleksandro e sussurra-lhe sensualmente ‘espera pela surpresa’. De olhos vendados ele aguarda saturado de desejo o regresso de Rubena.

A última frase que Aleksandro ouviu na sua vida antes do raspar de um fósforo foi ‘sente agora o ardor da nossa paixão’.

estamos a falar de coisas diferentes

— Queres a mãe morta? Mas que raio de filho és tu?
— Eu gosto da nossa mãe tanto como tu. Que merda de acusação é essa?
— Não disseste que ela está a sofrer muito?
— Sim disse.
— Não disseste que não há ninguém para tomar conta dela?
— Sim disse.
— Não disseste que a morte acabaria com o seu sofrimento?
— Sim disse.
— E então, sacana da merda, ainda dizes que não queres a mãe morta.
— Estamos a falar de coisas diferentes. Eu não disse que desejo a sua morte; apenas que estava melhor morta.


Uma história com exactamente 101 palavras.


Fascinado pela frase “estamos a falar de coisas diferentes” do conto “Um Conto Popular Para a Minha Geração: Na Pré-História do Capitalismo Tardio” de Haruki Murakami constante no livro “A Rapariga que Inventou Um Sonho”, tentei criar um texto sem sentido com apenas 101 palavras. Aqui está ele.

tem o gelo tendências suicidas?

Uma equipa de cientistas da Universidade de Oxford demonstrou que existem afinidades moleculares que vão muito para além da fórmula H2O no gelo existente nos Pólos Sul e Norte. As suas conclusões explicam, não apenas que o degelo actual é um mito e que este não tem nada a ver com a teoria do “Aquecimento Global”.

A equipa cortou ao meio um pedaço de gelo extraído de um glaciar no Polo Sul e fez o mesmo com um pedaço de gelo extraído de um glaciar do Polo Norte. Colocaram cada pedaço num copo de água gelado. Os quatros copos de gelo com os quatro pedaços estavam separados entre si por um espaço de 30cm. Por muito que os pedaços se mexessem nunca conseguiam juntar-se aos outros. Os cientistas diminuíram a distância para 15cm, para 5cm e para 0cm; o resultado era sempre o mesmo. Os pedaços de gelo batiam como moscas contra o vidro dos copos, mas não se associavam. Porquê? A equipa concluiu facilmente que desunido o gelo perde força.

Na fase seguinte posicionaram num recipiente um pedaço de gelo do Sul e outro do Norte e agora, sim, estes terminaram por se encontrar e nunca mais se separaram. Repetiram a experiência com os dois pedaços de gelo remanescente e o resultado obtido foi o mesmo. O gelo tem regras de atracção muito próprias.

Na última experiência dispuseram num recipiente ainda maior os quatro pedaços de gelo e eles acabaram por se unir sem nunca mais se distanciarem. O gelo tem tendências gregárias, concluiu a equipa.

Ficaram sempre colados até que derreteram. No recipiente já não existia gelo, mas apenas água. O gelo tem tendências suicidas, foi a segunda conclusão.

Com estas experiências a equipa concluiu que o gelo das calotas polares tem imbuído a nível molecular o desejo de migrar, de se encontrar com o seu distante outro, de se unir ao outro, e faz-lo de forma intencional e com carácter periódico. O fenómeno “degelo” não é pois mais do que um mito e nada tem a ver com a teoria do “Aquecimento Global”.

Não ocorrem “degelos“, mas migrações de gelo. Nestas migrações algum gelo acaba por se perder e em última instância faz-se uno com o seu EU mais íntimo: H2O (a comunhão perfeita!)


Como combater as migrações de gelo será agora a luta desta fantástica equipa de cientistas.

felizes os felizes por yasmina reza

Boa leitura. Gostei da escrita, digamos que minimalista.

Os capítulos, são 21, têm como título o nome de cada uma das personagens que se vão cruzando, às vezes em apenas pequenas referências, ao longo da narrativa.

Cada capítulo narra episódios diários tão comuns que são hilariantes.

Temos episódios que tratam de amor, de desejo, de luxúria, de humilhações, de loucura, de sussurros, de amizade, narrados brilhantemente.

Adorei descobrir esta escritora.


Ocorre uma deselegância no primeiro capítulo, Roberto Toscano, quando a escritora refere que a canção Sodade é portuguesa (página 17). A canção Sodade é cantada por Cesária Évora de nacionalidade cabo-verdiana.

odeio sudoku! (excerto)

Ando sem apetite. Com desejos de experimentar coisas novas. Não me recordo, nestes últimos anos, de ter esta necessidade, assim, tão premente.
São 22h31 e, enquanto passeio pela Rua de São Bento que me leva ao interior do Centro Comercial do Terço, percorro com os olhos para a direita, para a esquerda – nada desperta o meu interesse. As mesmas coisas. Os mesmos potenciais sabores.

Terminei a minha história sobre vampiros para enviar para a Revista Digital miNatura 133.

O tema anterior, da revista 132, foi Área 51.

oh! meu deus!

Dos 10 mandamentos há um que nunca me foi bem explicado na altura em que ia agrilhoado à catequese:
2º – Não usar o nome de Deus em vão.

Hoje a propósito de não sei o quê irei falar porque sim sobre esse mandamento do vosso senhor; exemplificando com questões enviadas por email.

Acabei de verter nos lábios o liquido de um Dry Martini feito com Beefeater 24 e disse “meu Deus! que bom!” – violei o 2º mandamento?
R: Claro que não. O Beefeater 24 é feito com 12 ingredientes naturais. quem fez o mundo foi Deus. Está, por isso, a louvar 12 das suas criações.

No cume máximo do desejo sexual explodi “meu Deus! que bom! ai! pará!” – violei o 2º mandamento?
R: Claro que não. “Crescei e multiplicai-vos, enchei a terra e conquistai-a” foi a primeira ordem do vosso Deus. Está, como tal, a informar Deus o quanto é bom a tarefa de multiplicação. Pecado será parar a meio.

Lancei após presenciar mais uma estupidez do meu colega de trabalho “oh! meus Deus! outra vez a mesma merda!” – violei o 2º mandamento?
R: Claro que não. Como sabe, ser cristão é não apenas ser bondoso, mas mostrar igualmente consideração, ser brando e longânime, exercer amorosamente o autodomínio. está, pois, a invocar amorosamente o nome de Deus para controlar um qualquer impulso assassino e dessa forma revelou que dizer a palavra Deus o fez brando e paciente; é uma palavra catalisadora de bondade. A utilização da palavra sinónimo de excremento na mesma frase que a palavra Deus poderia trazer-lhe problemas no confessionário fora de outro qualquer contexto. Vejamos: “outra vez… merda!” com o “outra vez” revela que tem estado atento ao comportamento de outro ser humano o que demonstra que vive fora de si para os outros.

Para mais esclarecimentos estejam à vontade.

o vosso teológico: BigPole

a normalidade do anormal

Para se escrever uma boa ou má história basta iniciar a sua escrita. O que depois salta para o papel é que marca a diferença. Saber logo agora que a história é uma anormalidade é normal, especialmente para mim, e quando o assunto trata “agrafos” não haverá dúvidas. Tenho pois de agradecer ao responsável deste blog a possibilidade que ele me dá para eu escrever alguns devaneios… de má qualidade.

Como já indiquei hoje falarei de agrafos, do ódio que tenho a esses pedaços de metal. Corrijo-me, do ódio que tenho à utilização do agrafador. Descobrir que o agrafador está vazio sem qualquer pré-aviso. Pimba! Pumba! – nada de agrafos, e agora que aquelas folhas de papel ficaram milimetricamente posicionadas para serem unidas é para dizer pouco, frustrante.

A única coisa que pode ser colocada quase e pé de igualdade de ódio é descobrir que aquela caixa de preservativos apenas está a ocupar espaço na gaveta. Nesta situação não odeio nem o preservativo, nem o seu uso. O meu ódio é redirecionado para a besta, eu, que foi suficientemente desleixada para perder uma queca potencialmente boa.

Recordo-me que houve uma altura, era eu mais novo, em que estive perante a ausência do acessório de látex exigido pela minha parceira, mas esta teve a amabilidade e esperou na minha cama enquanto eu fui adquirir uma caixa. Infelizmente não encontrei qualquer estabelecimento farmacêutico aberto e as caixas anónimas de distribuição de preservativos ou estavam vazias ou não funcionavam.
Infelizmente a parceira já não estava à minha espera para receber a triste notícia e partilhar a descoberta de uma solução de satisfação mútua. Matei o acumulado desejo ao mais puro estilo onanista.

Qual a ideia deste desvario? perguntam. Respondo: desde quando uma história precisa de indiciar uma conduta ou servir para reflexão futura? O que posso afirmar é que ficar sem agrafos é uma foda, e sem preservativos não há foda. Que tal isto para moral?

o vosso pouco proactivo: BigPole