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são cheiros

Desde que se recorda o cheiro das fezes incomoda-o. Foi tentando reduzir os odores nauseabundos experimentando mudanças alimentares. Apenas frutas, aqui apenas laranjas, maças, bananas, etc… e depois combinações de várias frutas; apenas insectos, combinações de insectos, insectos com frutas, com carne, com peixe, marisco, vegetais; apenas lacticínios, águas, vinhos, licores. Imaginem todas as variantes possíveis e imaginárias de comida e de qualquer coisa remotamente comestível. Nada resultou, os dejectos mudavam a consistência, mas o odor continuava a ser asqueroso.

Até que a solução lhe surgiu tão cristalina como o gelo. Desde que eliminou os receptores no nariz responsáveis pelo olfacto nunca mais teve problemas. Agora o mundo tem o cheiro ideal.

no interior: “estação das chuvas”

Vinheta, criada por Rui Rodrigues, de um louva-a-deus no interior do livro “Estação das Chuvas de José Eduardo Agualusa – edição Quetzal.

no interior: “areias brancas”

Vinheta existente no interior do livro do livro Areias Brancas de Geoff Dyer publicada pela Quetzal.

Areias Brancas por Geoff Dyer, Quetzal Editores, 07.2018, colecção Serpente Emplumada

lapdance 1.01

Num abrir e fechar de olhos LapDance chegou ao destino. Claro que para quem tem dois dedos de testa, enfim, para qualquer entendedor mediamente inteligente LapDance nunca fechou os olhos; isso seria o convite ao suicídio. É um sujeito doido, até desleixado, mas não kamikaze. O que interessa para a nossa história é o facto de que viajou mais rápido do que uma lesma vítima inocente da toma de viagra.

Desligou a mota no parque reservado aos VIP. Levantou a viseira do capacete, adorava especialmente este momento mágico; enquanto posicionava o descanso admirou-se com os pneus esfarelados, sintoma de boas curvas e ardente velocidade; o crepitar do escape abriu-lhe o apetite para umas castanhas assadas na brasa. Ali de preto iluminado apenas pela luz do candeeiro público auto alimentado sentiu-se um homem capaz de enfrentar sem dificuldade qualquer problema que Nectarina tivesse ou viesse a ter.

Só depois deste inócuo narcisismo é que tirou o capacete, deixando-o a repousar no depósito de gasolina, e observou pasmado e com uma total incompreensão a Bolo-Rei. Olhava como uma vaca para o vazio deixado por um TGV que ora estava ali, ora já não. Os seus olhos presenciavam a ausência de luz onde esta deveria existir. Se estivesse com o capacete alojado na cabeça poderia usar como desculpa a massa anónima de insectos colados à viseira. A verdade é que os enormes tubos de néon que compunham em voltas e reviravoltas as letras da palavra Bolo-Rei estavam completamente às escuras – seria agradável um suave piscar, até uma faísca. O facto da Bolo-Rei ter a forma de um rectângulo de ouro não sossegava LapDance; e a agravar o quadro nem a luz piloto, amarela, que assinalava a campainha das traseiras emitia qualquer luminosidade. Estranho, muito estranho, pensou. Estaria a sonhar? Um calafrio seria algo que não desgostaria LapDance; sempre era a prova de que estava bem acordado, mas o seu fato Alpinestars entre outras funcionalidades mantinha-o a uma temperatura corporal constante.

Cautelosamente aproximou-se da porta. As botas faziam estalar a gravilha; o tubo de escape copiava o som. Sentiu que estaria melhor no sofá a curtir um filme e a comer pipocas. A sua tara por comida era lendária, e qualquer motivo servia de pretexto para provocar todas as suas papilas gustativas.

Empurrou a porta que estava ligeiramente entreaberta. Entrou, e o que sentiu de imediato foi um cheiro que lhe trouxe agradáveis recordações de orgias, o cheiro adocicado de vómito; mas por mais preparado que pudesse estar não estava para aquele cenário.

[em continuação…]