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a reunião

Elvira Dark recorda-se do seu primeiro filme como se fosse hoje. Uma adolescente percorre um abandonado parque de estacionamento quando é vítima de um ataque tecnológico inaudito: é enforcada com um telefone sem fios até a cabeça ser decapitada. O arrojo de sangue marrom que besuntou a tela branca foi tão intenso que Elvira ficou nesse momento fascinada por sangue e por bifes tártaros.

O hoje é o dia da semana em que vai à reunião. Entrou sem qualquer receio na sala contígua à sacristia da Igreja Matriz em Barcelos, sem antes ter visitado o pelourinho. Sentia um dilacerante prazer ao imaginar o sofrimento e o sangue que aquelas pedras tinham testemunhado e bebido.

Na sala já se encontravam sentados em círculo Carl Maia, Francis Barnard, Cataline Stone, o orientador Hezekiah e surpresa… um novo membro.

‘Como já repararam temos hoje entre nós um novo membro’, iniciou a conversa Hezekiah após Elvira ter ocupado a cadeira remanescente, ‘e é altura de lhe desejar as boas vindas.’

‘Olá!’, responderam os membros em sincronia.

‘Olá. O meu nome é Bruce, Bruce Campbell e sou… não consigo, desculpem!’

‘Bruce se desejares podes apenas ouvir, não precisas de participar. Vai com calma. Todos nos sabemos o quanto é difícil’, aconselhou Hezekiah.

Elvira ficava constantemente extasiada pelo pescoço à touro seminal que Hezekiah exibia em cima de uns largos ombros. A imagem que se projectava, sempre, no seu pensamento era ela vestida apenas de luvas de mirtilo em azul a fazer carving na carne e ossos do portentoso Hezekiah com uma moto-serra STIHL MS 192 T. O seu delicioso devaneio durou pouco tempo; foi interrompido pelo gorgolejar a seco do novo membro.

‘Queres dizer alguma coisa Bruce?’, questionou Hezekiah.

‘Sim. O meu nome é Bruce Campbell e sou viciado em filmes Série B.’

estamos a falar de coisas diferentes

— Queres a mãe morta? Mas que raio de filho és tu?
— Eu gosto da nossa mãe tanto como tu. Que merda de acusação é essa?
— Não disseste que ela está a sofrer muito?
— Sim disse.
— Não disseste que não há ninguém para tomar conta dela?
— Sim disse.
— Não disseste que a morte acabaria com o seu sofrimento?
— Sim disse.
— E então, sacana da merda, ainda dizes que não queres a mãe morta.
— Estamos a falar de coisas diferentes. Eu não disse que desejo a sua morte; apenas que estava melhor morta.


Uma história com exactamente 101 palavras.


Fascinado pela frase “estamos a falar de coisas diferentes” do conto “Um Conto Popular Para a Minha Geração: Na Pré-História do Capitalismo Tardio” de Haruki Murakami constante no livro “A Rapariga que Inventou Um Sonho”, tentei criar um texto sem sentido com apenas 101 palavras. Aqui está ele.

porto-sudão por olivier rolin

Em Porto-Sudão, nas margens do Mar Vermelho, onde desempenha vagas funções de capitão de porto, o narrador é informado de que A., seu amigo de juventude, se suicidou. Juntos, na Paris de 68, tinham desenhado sonhos de um mundo mais justo, mais aventuroso, mais poético. A. tornara-se escritor; ele refugiara-se num exílio marítimo: ambos talvez procurando escapar às garras do mundo tal como ele é. Vinte e cinco anos depois do seu último encontro, o narrador decide regressar a Paris e procurar explicações para o gesto do amigo. Descobre uma história de amor infeliz, de um vazio avassalador, de um sofrimento de corpo e espírito, que por fim parece falar a um só tempo de Paris e de Porto-Sudão, cidades de todos os naufrágios. Maravilhoso relato de um amor onde «falta um corpo cuja marca invisível continua a fazer-se sentir», Porto-Sudão foi galardoado com o Prémio Femina 1994.

Livros do Brasil

Depois de ter lido três livros de Olivier Rolin de “viagens” este “Porto-Sudão” foi uma boa surpresa – primeiro estranha-se, depois entranha-se…

Muito agradável.


Tradução de João Duarte Rodrigues