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evil mind

I’ve a sweet heart, but an evil mind.

haja ânimo

Todos os dias eles subiam a mesma escada; encontravam, logo no topo, assim de rajada, enclausurado na vitrina de sempre, o mesmo cartaz com os dizeres “Haja Ânimo”.

Todos os dias, que eram tudo menos santos dias, contavam mentalmente, com o coração cheio de desânimo, os degraus: e um, e dois, e três, e agora quatro, e cinco, e já está quase, e seis, e sete, e oito, e noveeeeee e raios partam tudo… ufa… dez. E logo no patamar o cartaz que já foi de um amarelo vivo, agora descolorado pela passagem dos anos, sorria desdenhosamente para eles a publicitar um já muito ultrapassado “curso prático contra o desânimo, o ruído, o medo e a solidão”. Sentiam, quando o deixavam para trás, o sorriso espetado nas costas – a gozar com eles.

Eles que já foram crianças cheias de sonhos, adolescentes com hormonas saltitantes, adultos com esperanças, velhos com saudades. Eles que passaram por todas as pungentes quatro fases de um ciclo de vida, mas ao contrário da borboleta a última fase não é de um lindo renascimento, vêm-se agora numa nova, assustadora e inesperada quinta fase: a fase zombie.

Eles de olhos mortiços, corpos amortalhados, de andar morrediço são os novos zombies; são a corporalização do desalento, do dilaceramento individual; são autómatos de carne e sangue que obedecem sem reflexão a vontades incoerentes. Eles sabem-se bobis que recebem diariamente um osso descarnado em troca do nada.

O que lhes resta? Certamente a revolta, porque a vida nunca são dois dias.

joão amaral, a entrevista a quatro visões

João Amaral foi a minha grande descoberta no panorama da banda desenhada portuguesa nos finais da década de 90 através da revista Selecções BD. Fiquei fascinado pelos seus desenhos hiper-realistas e pelo facto de não existirem na prancha vinhetas estanques. As imagens corriam livres – uma delícia.

O autor continua a surpreender com uma capacidade ímpar para digerir novos estilos. É o caso do seu Fred e, mais recentemente do álbum “Cinzas da Revolta” no qual explora sem dificuldade um estilo diferente.

cinzas_da_revolta

cinzas da revolta: textos de miguel peres, desenhos de jhion (joão amaral)

Pelo que tenho em rascunho, indico os seus trabalhos por ordem cronológica:

  • A Voz dos Deuses (1994)
  • Quid Novi in Imperium? – Que Há de Novo no Império? (1999-2000)
  • O Fim da Linha (2000-2001)
  • Missão Quase Impossível (2003)
  • O Menino Jesus fez-se homem (2004) – ilustrações
  • A História de Manteigas no Coração da Estrela (2006)
  • Bernardo Santareno-Fragmentos de uma Vida Breve (2006)
  • Príncipe Valente no século XXI (2007)
  • A Espada Desaparecida (2008) – ilustrações
  • História de Fornos de Algodres (2008)
  • O Gui, a Nô… e os Outros (2006-2008)
  • Ok Corral (2008)
  • Fred & Companhia (2010-)
  • Cinzas da Revolta (2012)

Acho que não me escapou nada. Se existir algum lapso, corrijam-me sff.

Mas João Amaral, depois de desenhar bem e contar histórias com mestria, ainda se dá ao luxo de criar easter eggs nas suas pranchas. Neste desenho que faz parte do álbum “Bernardo Santareno-Fragmentos de uma Vida Breve” podemos descobrir com algum esforço um João Amaral, como ele bem diz e muito bem, “numa aparição hitchcockiana no meio da multidão“.

santareno

bernardo santareno – fragmentos de uma vida breve

E agora sem mais delongas a entrevista.

1. afinal quem é João Carlos Saraiva Amaral aka Joca aka Jhion? qual o sentido de tantos nomes? é por uma questão de estilo? ou para criar confusão no leitor?
Assim, até parece que somos muitos, não é verdade? A questão dos nomes é fácil de explicar. Em relação ao Jhion, pensei que estava na altura de arranjar um pseudónimo, uma vez que este álbum, As Cinzas da Revolta, em termos gráficos, muito pouco ou nada tem a ver com os meus trabalhos anteriores. Ora, eu já tinha usado este pseudónimo uma vez que concorri juntamente com o Jorge Magalhães, com uma banda desenhada a Moura (o OK Corral). Aí, éramos obrigados a usar pseudónimo e eu, na altura, inventei este que penso ter uma sonoridade parecida com João e já o usei noutras coisas que fiz e que apareceram no blogue. Agora, pela razão que já disse, pensei que fazia todo o sentido utilizá-lo e gosto por ser um nome curto. Além, de que, se procurares na net João Amaral é um nome terrivelmente comum (risos). Quanto ao Joca é uma junção dos meus vários nomes e utilizo-o para as coisas humorísticas que, de vez em quando, vou fazendo.

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2. qual é a sensação de ter um filho, Fred, mais velho do que tu? afinal já tem mais de 100 tiras publicadas e li em qualquer lado que uma tira é um ano de vida?
Bem, por essa ordem de ideias, o puto está mesmo velhote. E, vendo bem as coisas, já percebo porque é que, por exemplo, o Quino é eterno. É, provavelmente à conta dos bons milhares de tiras que fez. Pois, não sei… O que sei é que o Fred foi um desafio que fiz a mim próprio há já alguns anos, no sentido de fazer qualquer coisa de diferente num formato que até então não tinha utilizado: a tira. Isto já foi nos idos anos 90. Mas a coisa, na altura, ficou-se apenas por uma ou duas tiras. Há cerca de dois anos, e depois de ter publicado no blogue alguns postais que fiz utilizando a personagem, tive boas reações e acabei por voltar outra vez ao desafio, sem saber muito bem o que é que se iria passar e de lá para cá já lá vão mais de cem tiras…

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bernardo santareno

3. como consegues desenhar mulheres lindas, elegantes e sensuais? não perdes a concentração?
Não, pelo contrário. As mulheres lindas levam-me muito mais tempo e exigem-me o dobro da concentração, pois são mais difíceis de desenhar (risos). E lembro-me de, quando era miúdo desenhar mulheres que metiam medo ao susto, por mais bonitas que eu quisesse que ficassem. Por isso, para chegar a uma figura feminina aceitável, tive que trabalhar muito. Os homens são muito mais fáceis. Qualquer carantonha ou corpito servem. Eu penso, e isso é uma opinião pessoal, que às desenhadoras é muito mais fácil desenhar mulheres, enquanto que a nós homens se passa exactamente o mesmo em relação às figuras masculinas. Claro que, depois, com a técnica isso se vai diluindo…

4. adoras o género western, para quando uma banda desenhada com cowgirls ao melhor estilo do rancho das coelhinhas?
É capaz de ser uma boa ideia. Eu, uma vez até pensei em fazer precisamente um western em que a protagonista e a vilã fossem mulheres. Mas até ver, ainda está em águas de bacalhau. Pode ser que um dia me dedique a isso, até porque isso era uma bd que reunia duas coisas de que eu gosto muito: o western e desenhar meninas.

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o que se passa na cabeça das mulheres?

5. cinzas da revolta é o teu ultimo trabalho assinado com o nome Jhion, no próximo trabalho também vais criar outro pseudónimo?
Não, para já, chega de pseudónimos, até, porque se continuar assim, qualquer dia e, como tu dizes, o pessoal fica confuso, sem saber muito bem quem é quem (risos).

5. e agora uma pergunta mais séria e pessoal: és uma pessoa circunspecta de sorriso fácil por que usas óculos? ou serve para assustar potenciais chatos? ou até és uma pessoa relaxada que usa óculos?
Ah, isso é que é uma pergunta séria? Bem, uso óculos por culpa das muitas horas que passo ao computador e, provavelmente, por culpa do PDI. Ainda consegui viver trinta e tal anos sem óculos, mas agora, nada feito. Agora, não serei, com toda a certeza, uma pessoa mais ou menos simpática ou relaxada por causa disso. Os óculos, como as canetas. os lápis ou o computador são apenas uma ferramenta, no caso para ver o que estou a fazer um pouco melhor e não, não se destinam a afastar potenciais chatos.

O meu sincero agradecimento a João Amaral por ter a paciência e amabilidade para responder às minhas perguntas malucas.
Aproveitam para comprar o maravilhoso álbum Cinzas da Revolta e informo que alguns dos seus trabalhos anteriores ainda podem ser comprados em livrarias online.
João Amaral é um autor que merece ser lido, porque apresenta trabalhos com qualidade, e acarinhado porque, apesar das dificuldades que existem em lançar novas bandas desenhadas em Portugal, não desiste.[1] a fotografia foi rapinada do site Tex Willer Blog
[2] por indicação de João Amaral, informo que a menina que aparece ao seu lado no desenho de “Bernardo Santareno-Fragmentos de uma Vida Breve” é a sua mulher.
Todas as imagens são propriedade de João Amaral e são utilizadas apenas para fins informativos no contexto do post joão amaral, a entrevista a quatro visões

venda de sangue

Qual a minha surpresa, mas não total, era mais que previsto, ao ver em Barcelos a primeira loja franchisada de compra de sangue e de órgãos.
Como estava a ser sangrado pelo Estado mais que “social“, pelos bancos e outros parasitas, sem a aplicação de um qualquer hirudo medicinalis ao melhor estilo medieval, até que perdi qualquer vontade de viver, vender um pulmão e um rim para liquidar a totalidade dos meus débitos foi uma decisão fácil de tomar.

Vi-me passados 30 dias com uma conta do hospital impossível de suportar. Hoje venderei o meu coração para ser cremado e atirado aos quatro ventos.

bang bang, uma prancha

Depois de muita coragem, misturada com uma grande dose de preguiça, cá está a fotografia da prancha original, do excelente trabalho de Hugo Teixeira Bang Bang, que comprei aquando da sua breve passagem por Barcelos.

hugo teixeira

Foi um negócio difícil; ele não queria vender esta linda prancha dupla, mas quando lhe mostrei uns terríveis incisivos teve de ceder.

É uma linda peça que fica excelente no meu espaço de trabalho e me permite viajar para outros mundos quando a loucura toma posse de mim.

ana vidazinha, uma visita ao forno

Hoje realizo a Ana Vidazinha uma necrópsia ao melhor estilo sofista. Para quem não sabe Ana Vidazinha escreveu em perfeita simbiose com Hugo Teixeira o álbum de banda desenhada “Mahou Na Origem da Magia” e tem no forno em modo grill simples o segundo volume – não tenham medo o forno tem um bloqueio de segurança. Sei de fonte segura que teremos um segundo álbum com “uma bela mistura de amoras, framboesas, morangos e cerejas.” A originalidade foi combinar isto tudo com “uma bola de gelado stracciatella estrategicamente colocada no topo de tudo” – simples? sem dúvida, mas quem se iria lembrar disto? quem?? pois… Ana Vidazinha.

E ao contrário de Hugo Teixeira que gosta de cenas ela gosta de coisas. Tem uma queda para a tortura médica, considerada in por quem visita dólmenes; é bafejada por um palato fora do comum.

mahou_na_origem_da_magia

mahou, na origem da magia

Foi a entrevista possível tendo em conta que o microondas tinha acabado de fazer beep – altura para levar o caldo de legumes ao bichano da casa.

1. acreditas que atrás de um homem está sempre uma mulher pronta a lhe fustigar com o rolo da massa ou é mais um mito urbano? já que qualquer homem come com prazer as vossas experiências culinárias?
– Não sei, eu não sou mulher para fustigar com rolos da massa. Em caso de necessidade de armamento prefiro o bisturi, a serra oscilante e o berbequim ortopédico. E uma seringa de quetamina.

2. sabendo que tu és uma grande mulher achas que por essa ordem de raciocínio Hugo Teixeira é um grande homem? ou só de perfil é que engana?
– Não, não, cá em casa sou só eu que sou gorda. Bem, eu e o gato.

3. na altura de dar mimos ficas durante quanto tempo indecisa entre os dois bichanos da casa? e sempre que escolhes o mais fofo é por causa dos bigodes?
– Enquanto decido o gato não espera e instala-se logo no meu colo. Não são os bigodes, é o ronron que me vence.

4. não achas que se Hugo Teixeira tivesse uma dieta à base de brócolos pintalgados com bacon estaria menos virado para certas cenas e inclinado para as cenas que realmente interessam?
– Não resulta, tenho experimentado. Melhores resultados têm as pataniscas de bacalhau. Acabam é depressa.

dolmen

ana vidazinha

5. sei que escreves mais rápido do que o Hugo Teixeira tenta desenhar. Já pensaste em lhe colocar um ultimato tipo “ou avanças com essa prancha ou passo eu a desenhar as tuas cenas?” ou achas que com isso ele regressava à infância que realmente nunca deixou e passaria todo o tempo a brincar com legos?
– Uia, isso era uma ameaça mais para mim que para ele. Não, cada página que escrevo é uma estratégia de fuga. Faço-a, entrego-lha, ele atira-se a ela e enquanto está ocupado, eu posso esquecer que tenho mais pra escrever e dedicar-me a outras coisas.

6. quanto à banda desenhada achas que vais à frente do Hugo Teixeira ou atrás dele? ou tudo depende de quem leva a chave do carro?
– Os nossos carros só têm dois lugares: não dá para ir ninguém atrás. Ainda assim, se um dia tivermos um carrinho de mão prefiro que ele vá atrás a conduzi-lo enquanto eu vou refastelada à frente, no veículo, a ler um livro de BD.

Fiquei a saber que Ana Vidazinha com coisas faz magia na cozinha e com palavras magia nos livros.
Se não tiverem a oportunidade de visitar a cozinha de Ana Vidazinha, temos pena; comprem o seu livro Mahou, Na Origem da Magia e mergulhem numa receita que faz bem ao coração.

[1] a imagem de Crumble de Frutos Vermelhos foi rapinada do blog A Casa da Vidazinha
[2] a imagem do dólmen rapinada do perfil da Ana Vidazinha no Facebook
Bom apetite!

à noite

Encostado ao bar.
— Que gin têm? — perguntei.
— Apenas Bombay?
— Tens pepino?
— Não. Nem limão.
— Que pena! — retorqui pesarosamente exibindo em destaque o meu dedo mínimo direito.
— …
— Pode ser, então, um modesto gin tónico.

Sentado, numa zona ar livre, depois de descobrir a quantidade máxima de fumo que passivamente consigo fumar.
Aí fiquei a admirar a carne de vaca embalada com o mínimo de decoração; redução de custos? Ao ver as embalagens tão reveladores, algumas de forma assustadoramente com o prazo de validade mais que ultrapassado, este vosso caçador noctívago constatou que a carne não se torna tão apetitosa. A ausência da surpresa, a impossibilidade de desflorar o pacote, inibi-me o palato. Eu gosto de conquistar a caça, odeio quando me é, assim como que oferecida, ao desbarato.
Por este andar é menos custoso e muito mais seguro comprar a carne de vaca no mercado dos Feitos.

De pernas afastadas a segurar Nele.
Adorei o urinol em aço inox AISI 316 polido de alto brilho, de 2m30cm, no qual verti um longo e jactante jacto de urina. Ver reflectido, não obstante por apenas dois minutos, no espelho em inox o meu pénis foi gratificante. Raramente tenho a oportunidade de o Ver, mesmo que em imagem invertida, pois está constantemente a fazer perfurações em túneis sobreaquecidos e húmidos. Sei que tenho um ocupação de risco. Ser caçador it’s hard work, but someone has to do it. Termino acrescentando que hard work never killed anyone, exceptuando, no meu caso, alguns milhões de milhões de espermatozóides.

vazio? eis a questão!

Entrei na Trindade com destino a Vila de Conde. O metro quando chegou à estação da Fonte de Cuco estava completamente cheio; transpirava pessoas por tudo o que era sítio.

Corria tudo bem, estava a curtir uma boa leitura e uma doce música, até entrar um velhote na estação de Esposade que petrificou o olhos em cima de mim; o olhar suplicava o meu lugar. Que cena! Dirigi a vista para os lados e não pude deixar de constatar que estavam no compartimento pessoas mais novas do que eu. Que fossem elas a ceder o lugar. Hoje em dia há cada marado.

Mais um solavanco e foi com dificuldade que o velhote se aguentou a pé, apesar de estar abraçado a um varão. Vi-lhe gotas de suor a escorrer pela cara; só faltava o sujeito ter agora um ataque de coração. A agravar o clima os olhos do homem continuavam acampados em mim. Haja paciência! O tipo não vê que a carruagem está repleta de adolescentes bexigosos. Porque não os encara ao estilo Bambi?

Fiquei tentado a levantar-me quando percebi que o velhote até podia ser o meu pai. Se, assim fosse, eu gostaria que alguém lhe tivesse cedido o lugar. Cruzei e descruzei as pernas com a ideia de que, possivelmente, mesmo que remotamente, poderia estar a ser um sacana – ele podia ser o meu pai!

Ele podia ser o meu…, no segundo momento em que este pensamento me ocorreu tive a epifania que resolveu os problemas morais que estava a sentir; a constatação de que em situação semelhante, o mais certo, era o meu pai não ter alguém a ceder-lhe o lugar porque existirá sempre um filho-da-puta como eu. Fiquei com o espírito sossegado, encerrei as pálpebras para apreciar devidamente a Icarus Dream Suite Op. 4 de Yngwie Malmsteen que começou a invadir-me os ouvidos.