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haja ânimo

Todos os dias eles subiam a mesma escada; encontravam, logo no topo, assim de rajada, enclausurado na vitrina de sempre, o mesmo cartaz com os dizeres “Haja Ânimo”.

Todos os dias, que eram tudo menos santos dias, contavam mentalmente, com o coração cheio de desânimo, os degraus: e um, e dois, e três, e agora quatro, e cinco, e já está quase, e seis, e sete, e oito, e noveeeeee e raios partam tudo… ufa… dez. E logo no patamar o cartaz que já foi de um amarelo vivo, agora descolorado pela passagem dos anos, sorria desdenhosamente para eles a publicitar um já muito ultrapassado “curso prático contra o desânimo, o ruído, o medo e a solidão”. Sentiam, quando o deixavam para trás, o sorriso espetado nas costas – a gozar com eles.

Eles que já foram crianças cheias de sonhos, adolescentes com hormonas saltitantes, adultos com esperanças, velhos com saudades. Eles que passaram por todas as pungentes quatro fases de um ciclo de vida, mas ao contrário da borboleta a última fase não é de um lindo renascimento, vêm-se agora numa nova, assustadora e inesperada quinta fase: a fase zombie.

Eles de olhos mortiços, corpos amortalhados, de andar morrediço são os novos zombies; são a corporalização do desalento, do dilaceramento individual; são autómatos de carne e sangue que obedecem sem reflexão a vontades incoerentes. Eles sabem-se bobis que recebem diariamente um osso descarnado em troca do nada.

O que lhes resta? Certamente a revolta, porque a vida nunca são dois dias.

vamos aprender, outra opinião!

A opinião? mais contundente feita por uma nova leitura do álbum “Vamos Aprender”. Qualquer lapso de memória é da minha inteira responsabilidade:

— pai, afinal desenhas muito bem!
— por que dizes isso?
— o crocodilo do Para a Margarida
— ó rapariga isso é a dedicatória dos autores: a Aida Teixeira e o Carlos Rocha, ele é que desenhou… já te tinha explicado isso.
(…)
— pai, como é possível o crocodilo ser tão lindo e ser o mau da história?
— este rato é demais, não é nojento como o rato morto da tua fotografia… afinal é nojento…
— repete-me lá isso…
— está a roer o pincel com os dentes, muito pouco higiénico não é pai?
— o leão faz um cara divertida, mas não deve ser bom ser mordido por um crocodilo.
— Margarida deves ler a história seguinte e não andares a saltar as folhas.
— é um livro de crianças, não é pai?
— sim é…
— então pai esta criança que faz anos HOJEEEE lê como uma criança do Japão (e soltou um valente gargalhada).
— a abelha é linda, mas continuo com medo de abelhas.
— quem esta menina das fotografias?
— é a filha da Aida Teixeira, a responsável pelos textos do livro.
— ah! é por isso que este senhor é o desenhador…
— como…?
— a menina não sabe desenhar muito bem.
— ó pai… és pitosga… (riso) pitosga…
– lê o livro e deixa-me em paz, pode ser?
— pitosga…
— Margarida…
(…)
— estás a ler ou a ver só os desenhos?
— estou a ler pai.
— é que não te ouço.
— ó pai, não és a minha professora por isso não preciso de ler alto.
— mas estás a ler mesmo, certo?
— zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz claro.
— se tiveres dificuldade pede ajuda, ’tá bem?
— ó pai já estou no 2º ano
(…)
— ó pai só tem quatro histórias!

vamos aprender, a moral da história!

Este livro, “Vamos Aprender”, está rotulado com um livro de banda desenhada para crianças o que é uma estratégia de marketing perfeita. Como sabemos existe, sempre, uma criança dentro de cada um de nós; a criança dentro de mim tem a sorte de ter muito espaço para brincar. Pelo que fica dito é um álbum para todos.
Se existir alguém que já não tem uma criança dentro de si estaremos com toda a naturalidade perante um sociopata.

E quanto ao livro? Vale a pena o investimento? As histórias têm moral? O desenhador sabe desenhar? E sem espanto o sim surge com naturalidade.

Gostei das histórias que li.

vamos aprender

vamos aprender

Destaco em primeiro lugar o facto de as palavras usadas serem “normais” e não descerem para o patamar do facilitismo “porque poderá haver crianças que não percebem certos termos”; há muita boa gente que parte de principio de que as crianças ou são estúpidas ou não precisam aprender o gosto pelo aprender. Neste aspecto aplaudo, Aida Teixeira, a autora dos textos.

Em segundo lugar os desenhos estão simplesmente excelentes e podem “quase” ser lidos sem o recurso às palavras. Façam esse exercício, é divertido. Não exagerando nos pormenores, alguns estão lá a personalizar cada prancha, como a joaninha e o caracol com a faixa “FIM”, Carlos Rocha criou pranchas perfeitas.

O melhor exemplo é a primeira prancha do álbum. Aí temos a imagem, o texto e a legendagem por Mário Freitas – poderosa combinação!

Um livro que recomendo vivamente.

expulsar os demónios

– Pai podes brincar comigo? – perguntou a minha filha mal acabei de abrir a porta de casa.
– Daí a pouco, agora tenho de expulsar uns demónios – respondi, no meu tom mais que sério, deixando-a pensativa. E lá ficou no hall a ruminar. Deve ter sido por causa da palavra “expulsar” que no seu modesto vocabulário, certamente, ainda não tinha um adequado sinónimo.

[… pausa para processamento de informação …]

– MÃE, MÃE… OHHH MÃEEEEEEEEEEEEEEE, tenho medo, o pai disse que há bichos aqui – gritou a soluçar, e correu para a mãe que a deve ter abraçado estupefactamente aborrecida.
– Onde está o teu pai?
– Na casa de banho. E ’tá a gritar!
– Pois está, a gritar “saiam daqui demónios!” – frase dita num tom de voz tão gélido que me arrepiou até os cabelos que não tenho.
– O pai está a brincar. Não é a sério. Olha Margarida vai à cozinha buscar uma colher de pau para também nós brincarmos.
– Uma colher de pau? – questionou a inocente criança. Este pedido da mãe foi ouvido por um pai ligeiramente assustado. Uma névoa de suspeição já entrava na casa de banho por baixo da porta e pelo buraco da fechadura.
– Sim, Margarida, vamos bater com ela na cabeça do palerma do teu pai. Pode ser que com dois chifres ele convença os demónios a deixarem a nossa casa.

Danger, Will Robinson!” – aí estava eu, mais uma vez, numa posição periclitante. Sou vítima de odiar a monotonia e sinto-me, como tal, na obrigação de criar momentos teatrais.

as palavras

“Foda-se!”, gritei mal os lábios tocaram o líquido castanho.
“O senhor bem que podia ter cuidado com a linguagem. Está aqui uma criança.” Isto foi nasalado por uma senhora pimpona acompanhada por um rapaz dos seus 15 anos.
Reconheço que o impropério saiu-me assim de rajada. No entanto o café estava quente como o caraças.
Controlei-me para não mandar a senhora dar uma volta ao bilhar grande. Detesto que me chamem a atenção. Odeio.
Contudo, a minha rebeldia ganhou. Tive de cuspir uma resposta em tom de pergunta. Arrojei um “PÁ!” para chamar a atenção do adolescente; e perguntei-lhe “sabes o que quer dizer a palavra cona?” A senhora ficou mais do que chocada, não sei se pela pergunta, se pelo balançar da cabeça do miúdo a indiciar um sim.
“Se sabes o que significa cona significa que já sabes de foda. Por isso fodam-se e deixem-me em paz!.

o vosso rebelde: BigPole